À ocasião do décimo aniversário do falecimento de Steve Jobs, era inevitável que esta crónica seria sobre isso. Afinal, muitos lerão estas palavras num produto criado pela Apple ou, pelo menos (e hás de me dar o braço a torcer aqui), influenciado por ela. E 10 anos depois, absolutamente tudo a respeito da Apple ainda é fruto daquele sprint final que Jobs deu entre 2001 e 2011, quando apresentou ao mundo o iPod, o iPhone e o iPad logo depois de ter conseguido salvar a Apple da falência com o lançamento do iMac. Ou pelo menos esta é a narrativa que se cristalizou no folclore popular.
Se já leu as biografias lançadas nos últimos anos sobre Steve Jobs, como, por exemplo, a feita por Walter Isaacson, ou talvez a “Becoming Steve Jobs”, de Brent Schlender e Rick Tetzeli, existe muito pouco que ainda possa-lhe ser dito sobre o homem e que será uma novidade. Acho que a esta altura, especialmente para entusiastas de tecnologia, já é de conhecimento popular que Jobs era ao mesmo tempo genial e engenhoso. Enquanto ajudou a acelerar a evolução tecnológica — e o nosso acesso a ela, Jobs deixou um legado pouco invejável do ponto de vista pessoal. Da filha cuja paternidade recusou-se a reconhecer durante anos, à predileção pelo emprego do atrito como uma hábil ferramenta de polimento, não faltam exemplos que trazem desconforto à sensação da idolatria da qual Jobs é fruto.
De volta aos produtos, quem conhece a história da criação do iPod, sabe que Jobs teve muito pouco a ver com ela. É claro que Jobs sempre teve um interesse gigantesco por música, e sempre procurou associar isso à imagem da Apple (especialmente após o seu retorno), mas o verdadeiro inventor do iPod foi Tony Fadell, e não Jobs. Apesar disso, o nome de Jobs está na patente do produto, bem como em 140 outras patentes de produtos que a Apple desenvolveu sob a sua liderança. No caso do iPhone, a história é parecida. De disputas internas pelo design do dispositivo, até decisões de última hora envolvendo o Gorilla Glass, a existência do iPhone deve-se ao incansável compromisso das equipas de software e de hardware que passaram meses sem dormir para transformar uma ideia em realidade.
Mas o fato é que ambas as coisas aconteceram sob a liderança de Jobs, e isso não é uma coincidência. Um destes dias, o programador Marco Arment definiu muito bem o que me parece ser a relação de todo o mercado de tecnologia com Jobs: mais do que um executivo ou um líder, ele adotou uma figura paterna cuja aprovação e respeito só poderiam ser conquistados por poucos merecedores. E essa aprovação era concedida na forma da adoção de ideias que muitas vezes Jobs apresentava como dele próprio.
Eu sempre tive bastante dificuldade de falar sobre a genialidade de Jobs, porque sempre me pareceu que isso exigia, necessariamente, relevar os aspetos maus da sua personalidade. E não eram poucos. Mas o curioso sobre tudo isso é observar como ele próprio vivia dividido entre o desconforto de ter passado a vida inteira lidando com a insegurança da rejeição (e todos os aspetos envolvendo as duas adoções), e o papel de liderança conquistado pela sua vaidade em ficar sob o holofote desde muito cedo, enquanto Steve Wozniak soldava chips e, por vezes, os próprios dedos na placa lógica do Apple I.
Hoje em dia, pergunto-me se haveria espaço para Steve Jobs num mercado tecnológico quase irreconhecível, quando comparado com o cenário de há 10 anos. Mas ocorre-me que talvez o mercado só seja diferente porque não há ninguém com a mesma presença impositiva que Jobs carregou durante a sua passagem pelo planeta. Nem mesmo Elon Musk, com sua atitude abrasiva e com o orgulho de não ter papas na língua, carrega o empuxo gravitacional que estava associado à simples existência de Steve Jobs. A minha impressão, é que o mundo da tecnologia parou no segundo em que o coração de Steve Jobs deixou de bater, e estamos todos em animação suspensa enquanto esperamos pelo próximo ocupante do cargo de líder ou, como disse Arment, de pai do mercado da tecnologia. Por mais imperfeito que ele possa ser.