Farei uma confissão: eu nunca dei muita bola para o Joe Rogan. Nem quando ele iniciou a carreira como comediante de stand-up, nem quando passou a atuar como comentador de MMA, nem quando ele tentou ser apresentador de TV no programa Fear Factor, e nem quando ele finalmente encontrou no podcast o estrelato que tanto lhe custou a chegar.
Acho que a primeira vez que ouvi falar nele, foi em uma das entrevistas que ele fez com o Elon Musk. Digo “uma das” porque eu imagino que tenham sido várias, dada a quantidade de notícias envolvendo os dois que me lembro de ter lido (e até reportado no Loop Matinal) nos últimos anos. De lá pra cá, já com o nome Joe Rogan constantemente no meu radar – e a sua absolutamente inegável influência em todo o mercado mundial de podcasts – teria sido um grande exercício de futilidade tentar ignorá-lo ou dispensá-lo como alguém irrelevante quando surgiu a notícia de que a sua nova casa seria o Spotify.
A essa altura, já familiarizado com a perigosa atitude de “eu somente faço perguntas e recebo convidados que falam verdades, sem filtros, sem medo” de Rogan, eu imaginei – junto de boa parte do resto do mercado de podcasts – que o Spotify estava a fazer uma aposta bastante arriscada. Ao pagar US$ 100 milhões para tornar exclusivo o podcast mais famoso do mundo, o Spotify provavelmente havia calculado minuciosamente o risco que as inevitáveis novas polémicas do podcast trariam para a imagem de marca do serviço como um todo, e havia concluído que no agregado, o saldo seria positivo.
Bem, cá estamos, 14 meses depois da migração do podcast, e o momento da verdade chegou. Como resultado alguns episódios em que recebeu convidados que promoveram informações erradas sobre a pandemia e a vacinação contra o vírus, um grupo onde quase 300 médicos enviou uma carta ao Spotify a pedir algum tipo de sinalização em episódios que trouxessem desinformação. Um pedido absolutamente razoável, visto que não defendiam o banimento de Rogan. Defendiam, sim, estes episódios como um desserviço e uma ameaça à segurança pública, o que, de novo, me parece uma definição bastante apropriada.
Dias depois, essa carta chamou à atenção de Neil Young (que nunca foi muito fã do Spotify, a ponto de ter lançado um natimorto serviço concorrente chamado Pono, junto de um igualmente irrelevante player de MP3 sem compressão) que adotou uma atitude mais abrasiva: ou Joe Rogan ficava na plataforma, ou Young ficava. Não haveria espaço para ambos. Previsivelmente, o Spotify optou por Rogan, e Young – que lutou contra poliomielite quando era criança e sabe da importância de vacinas – foi-se embora do Spotify. Depois dele, sua compatriota Joni Mitchell – que também teve poliomielite – fez o mesmo, seguida de alguns outros roqueiros que já viveram dias de mais glória, apesar de aparecerem de vez em quando no meu Shuffle do Apple Music.
Quando dei a notícia do ultimato de Neil Young no Loop Matinal, pensei em comentar que depois de ter ignorado a carta dos 300 médicos nas semanas anteriores, a pressão de artistas por uma atitude contra Rogan poderia ser mais eficiente (apesar do facto de que Young não é exatamente uma Taylor Swift quando o assunto é poder de barganha). Dito e feito. Isso deu início a um efeito dominó que enfim fez o Spotify se manifestar. Manifestação essa, infelizmente, completamente decepcionante.
Daniel Ek, CEO da empresa, disse que o Spotify é apenas uma plataforma de disponibilização de conteúdos terceiros, e não um veículo de media. Esse é o mesmo argumento que o Facebook, por exemplo, tenta empurrar quando cobram mais responsabilidade sobre a moderação dos conteúdos espalhados na rede de Zuck. A diferença é que nesse caso, o Facebook está (relativamente) certo. Já o Spotify, não. O Spotify comprou o podcast do Joe Rogan. Ele é o único distribuidor do podcast. Ele pagou pela exclusividade, e pelas minhas contas no Twitter, já economizou mais do que os US$100M que pagou pelos direitos se levarmos em conta que o tempo que as pessoas passam ouvindo Joe Rogan Experience significa tempo gasto na plataforma em que o Spotify não precisa pagar direitos autorais para nenhum artista de nenhuma música.
No caso dos podcasts públicos, ou seja, os não-exclusivos, o Spotify de facto é apenas uma plataforma de distribuição. Aí cabe – ainda que de forma covarde – o argumento de que ele não precisa necessariamente se disponibilizar pelas informações promovidas por terceiros. Essa é uma briga que envolve a desatualizada Seção 230 da lei americana, mas ainda assim essa é a lei, e ela precisa ser respeitada. Mas não é o caso dos podcasts exclusivos.
No fim de contas, o Spotify perdeu aqui uma gigantesca oportunidade de inaugurar uma espécie de nova era na forma de lidar com a divulgação de mensagens enganosas. Tivesse a empresa buscado alternativas reais para resolver o problema, por mais simples que elas fossem (imagina uma mensagem de áudio avisando sobre informações contestadas antes de episódios com… informações contestadas), teria feito o Spotify parecer justo na forma como trata os seus parceiros, clientes e, especialmente a si mesmo.
Ao se esconder atrás do eficiente argumento do Facebook, o Spotify sabia que estava a tomar uma decisão que o eximiria de problemas imediatos sobre moderação e responsabilidade. O problema, é claro, é que agora ele está junto do Facebook em diversas outras listas. Incluindo a da inevitável regulamentação desse tipo de assunto.