Há algumas semanas, na crónica FTC vs Big Tech: Round 1!, falei sobre como a Microsoft “tem passado os últimos 20 anos invejavelmente sob o radar das investigações competitivas que parecem pipocar diariamente para cima da Apple, Amazon, Google e (especialmente) Facebook”.
Parte do meu argumento apoiou-se no facto de, com base no que ela aprendeu no histórico processo antimonopolista ao qual ela foi submetida, havia passado a operar com muito mais cautela e embasamento legal – fora um pesado lobby em Washington – a cada novo passo dado. Por um infortúnio do destino, boa parte desse período ela também passou sob o comando de Steve Ballmer que, apesar de bastante competente, definitivamente não pode ser descrito como um visionário. Ao apostar todas as suas fichas no Windows, Ballmer deixou passar por completo a oportunidade da Microsoft de se firmar no mundo mobile quando teve a oportunidade. Então somando a compulsória forma cuidadosa de promover os seus negócios à entusiasmada, porém estagnada liderança de Ballmer, a Microsoft passou boa parte das últimas décadas em um perigoso estado de estagnação.
Tudo mudou, é claro, quando Satya Nadella assumiu o comando da empresa. Ao adotar a nuvem como a base de todas as operações da Microsoft, expandindo também os investimentos em produtos muito além de apenas o Windows, Nadella fez em seis meses mais do que Ballmer fez em muitos, muitos anos. Este foi um processo planeado e executado com cautela, e que parece envolveu uma série de compras multimilionárias. Mojang, LinkedIn, GitHub, Nuance, Bethesda e, mais recentemente, Activision Blizzard, cada uma dessas compras ajudou (e seguirá ajudando) a Microsoft a expandir e a diversificar a sua presença no nosso quotidiano. E o mercado recompensou essa mudança. Desde que Nadella assumiu o cargo de CEO, a empresa já valorizou aproximadamente 700%. Sob os 14 anos de comando de Ballmer, ela desvalorizou 30%.
Pois bem. Olhando para todo esse histórico, parece-me que a Microsoft está prestes a iniciar um novo capítulo na sua história. Se ela passou os últimos anos atuando de forma cirurgicamente silenciosa enquanto diversificava os seus negócios, nesta última semana ela parece ter mudado o tom, transformando-se em uma agente bastante vocal para liderar a mudança de todo um mercado. Estou a falar, é claro, do Open App Store Principles: uma série de diretrizes que a empresa adotará (de forma convenientemente variável) em todas as suas lojas de aplicações. Ela já havia dado uma prévia dessa movimentação na apresentação do Windows 11, quando anunciou que o sistema rodaria apps Android, e que os desenvolvedores de apps da Windows Store poderiam adotar métodos de pagamento de terceiros, sem qualquer custo ou interferência da Microsoft. Este, inclusive, é um dos compromissos que a Microsoft reafirma no Open App Store Principles, junto de uma série de outras regras que, dentre outras coisas, terão o objetivo de nivelar a concorrência entre ela e os desenvolvedores e, igualmente importante, entre os desenvolvedores e empresas de todos os tamanhos.
Parte da motivação dessa nova atitude, segundo a própria Microsoft, é a inevitável série de regulamentações às quais o mercado de apps passará a ficar sujeito ao longo dos próximos anos. No documento ela diz que resolveu antecipar-se a essas mudanças de forma proativa (mas não muito, né?), e dar o exemplo para o resto do mercado de que é possível ter uma relação mais justa e amistosa com os desenvolvedores.
Pois bem. Na teoria tudo isso é muito bonito, mas existem algumas ressalvas importantes sobre toda essa manobra. A primeira é a mais óbvia: de todos os grandes players do mercado, a Microsoft é quem menos tem a perder com uma mudança (obrigatória ou voluntária) na forma como lida com apps, cobranças e etc. Hoje em dia, a Microsoft sequer é citada em relatórios de downloads ou de faturamento no segmento de apps, e o próprio facto dela ter aberto o Windows 11 para ficar compatível com apps de Android (por meio da App Store da Amazon, diga-se de passagem) comprova isso. Portanto, ela não está abrindo mão de exatamente muita coisa, exceto pelas mudanças na loja de apps da Xbox. E é aí que entra o meu segundo ponto: nem todas as mudanças que ela irá promover para o mercado de apps para Windows serão adotadas no mercado e apps para Xbox, onde ela realmente teria algo a perder no caso de uma regulamentação mais… digamos… draconiana.
Isso é algo que a Microsoft sabe que os mais atentos perceberiam, mas que ela sabe igualmente que a maioria dos anciãos reguladores em Washington não saberá diferenciar. Quem lê as novas regras da Microsoft por alto, ou sem um conhecimento mais profundo sobre o real significado do impacto dessas mudanças, pode achar que está a ler a resposta perfeita para a questão regulatória. Mais abertura, mais concorrência, mais transparência, mais privacidade, mais segurança, etc. E enquanto parte disso é verdade, e muito do que a Microsoft disse que pretender adotar aqui seria suficiente para fazer Tim Cook e Sundar Pichai perderem o sono por semanas, a outra parte mostra que a Microsoft de Satya Nadella está pronta para a próxima etapa da história da empresa. A etapa em que, após fortalecer-se em todo o resto das operações, irá transformar uma das maiores fraquezas da Microsoft, que é a ausência de uma presença forte no mundo de apps, em um super-trunfo. O super-trunfo que dobrará todo o resto do mercado na direção dela, provavelmente como Nadella sempre pretendeu.