No meio de todas as notícias dos últimos dias, uma chamou-me à atenção em duas etapas. Primeiro, pela notícia em si. Depois, pela reação (ou falta dela) do público em geral – e especialmente do público mais ligado a tecnologia.
Falo dos Ray-Ban Stories, os óculos escuros conectados da marca, desenvolvidos em parceria com o Facebook. Ou essa foi a história contada no lançamento, quando a realidade não poderia ser mais distante. Digo isso porque estes não são óculos conectados da Ray-Ban. Eles são na realidade os óculos escuros com DUAS câmaras do Facebook, para os quais a Ray-Ban inexplicavelmente aceitou ceder a sua marca e associar a sua propriedade intelectual.
Para quem não sabe do que estou a falar, o resumo é o seguinte: os Ray-Ban Stories trazem duas câmaras de 5 megapixels, uma de cada lado da junção entre a armação e as hastes, que servem para capturar vídeos e fotos em primeira pessoa. Eles trazem um LED minúsculo branco que, quando aceso, indica que existe um vídeo a ser gravado, e possui microfones para captar o som ambiente e permitir a ativação do utilizador por meio de comandos de voz.
Longe de ser uma ideia inovadora, os Ray-Ban Stories do Facebook surfam na onda iniciada pelo natimorto Google Glass, continuada pelo curioso porém disparatado Microsoft HoloLens, e sucedida pelo casmurro Snapchat Spectacles. E se o HoloLens e os Spectacles conseguiram desviar da impugnação que veio em resposta ao Google Glass, com pelo menos um caso de uma pessoa que apanhou num restaurante ao expor os outros patronos a um registro indevido e, principalmente, não autorizado, os Ray-Ban Stories são a perfeita materialização do que o Facebook faz de melhor: enfrentar a rejeição ao absurdo com um absurdo ainda maior.
Sei que estamos a falar de uma empresa que não se deixa abalar pela responsabilidade de estar a ruir a democracia mundial. Esta é a empresa que lançou um display conectado com uma câmara embutida meses após o maior escândalo de privacidade da sua história. A mesma empresa que tem como diretor de ética o executivo que liderava a VPN que por anos foi usada como ferramenta de espionagem da concorrência. Sei que não dá para esperar muito.
E é justamente por isso que me estupefaz a decisão da Ray-Ban de ter aceitado não somente dar a sua marca, não somente dar os seus icónicos produtos, mas tomar para si a responsabilidade sobre a existência dos mesmos. Estes não são os Facebook Stories. Não São os Facebook/Ray-Ban Stories. Os menos atentos (os mesmos que NUNCA saberão que devem buscar por um indicador LED branco do tamanho de meio grão de arroz para saber se estão a ser filmados sem consentimento) nunca saberão que aquele produto, na realidade, é do Facebook. Eu sei disso, tu sabes disso e, principalmente, o Facebook sabe disso.
Ao lançar os seus óculos sob a chancela de outra empresa, o Facebook mostra que já se tornou um mestre na arte de conquistar o mundo e obliterar a nossa privacidade, um cavalo de Tróia de cada vez.