“Senador, nós veiculamos anúncios”. Foi com essa frase e com um sorriso ironicamente desafiador no rosto, que Mark Zuckerberg respondeu ao seguinte questionário de um político americano: “Mas… se o Facebook é grátis, de onde é que esse dinheiro todo que ganham?”
Essa pergunta foi feita em 2018, em meio a dezenas de outras indagações não menos ridículas, rasas ou despreparadas por parte dos políticos americanos.
Para quem não se lembra, o que aconteceu foi o seguinte: em março de 2018, o analista de dados Christopher Wylie contou ao jornal The Guardian que o seu antigo empregador, a empresa britânica Cambridge Analytica, havia adquirido ilegalmente dados pessoais de dezenas de milhões de usuários do Facebook, e usava isso em campanhas políticas, incluindo a que havia eleito Donald Trump.
Esse foi o primeiro de uma série de escândalos quase diários sobre a forma abominável como Facebook opera (e segue operando, diga-se), e que no mês seguinte levaram o Congresso americano a convocar Mark Zuckerberg para dois dias de depoimentos sobre a empresa e sobre a privacidade (ou falta dela) dos seus utilizadores.
A expectativa para este depoimento era gigantesca dentro e fora do Facebook. No interessantíssimo livro An Ugly Truth, escrito pelas jornalistas Sheera Frenkel e Cecilia Kang, elas contam como Mark Zuckerberg e a sua equipa passaram noites em claro ensaiando cada resposta que os senadores poderiam perguntar, e preocupadíssimos com a forma como Zuck se portaria, já que ele historicamente sempre meteu os pés pelas mãos em situações públicas de desconforto. Fora do Facebook, a sensação (especialmente dentre os críticos da empresa) era de expectativa e de empolgação para uma inevitável alforria. Mark Zuckerberg seria castigado durante 2 dias, e o mundo inteiro iria acompanhar a sua ruína em tempo real.
Mas não foi isso que aconteceu. O que o mundo inteiro viu foram dois dias de perguntas descabidas, feitas por senadores mais interessados em ganhar pontos políticos com as próprias bases eleitorais do que em cumprir a pauta dos inquéritos. E pior, os poucos que se propuseram a tentar de fato expor Zuck pelo energúmeno que é, fizeram perguntas absolutamente insignificantes e descabidas.
Pois bem. Dito tudo isso, vamos agora ao presente. Ou quase presente. Quem costuma acompanhar as notícias vindas dos Estados Unidos deve ter ficado a saber do (revoltante) julgamento que inocentou Kyle Rittenhouse. Os detalhes desse julgamento não vêm ao acaso, mas lá pelas tantas a Apple (e mais especificamente a função pinch-to-zoom dos iPhones e dos iPads) entrou em pauta, com o argumento de que os logaritmos do sistema aplicavam inteligência artificial para exibir imagens e vídeos com zoom, e por isso mídias digitais com zoom não deviam ser utilizadas como provas válidas no julgamento. Perceba que eu escrevi logaritmos, e não algoritmos lá em cima. Foi assim que o juiz do caso e o advogado de defesa conversaram, sem qualquer ideia sobre o que estavam a falar. E o juiz do caso aceitou o argumento, proibindo a utilização de um vídeo que poderia ter mudado o veredicto.
Mas antes do veredicto, o juiz do caso voltou a tocar nesse assunto. Ele justificou a própria decisão de não permitir o uso de vídeos com zoom no julgamento, e… bem… apenas assista:
Jesus Christ on a triscuit. pic.twitter.com/ss4py9Mrg5
— Amanda Guinzburg (@Guinz) November 12, 2021
Tenho pensado muito neste vídeo e neste caso, e inevitavelmente isso remete-me também aos depoimentos de Zuck frente ao Senado americano. Para nós que gostamos (e entendemos) de tecnologia, é evidente o abismo que separa os legisladores e o mundo real. E empresas como o Facebook sabem disso. Elas aproveitam-se dessa incapacidade dos governantes de compreenderem os pormenores e, principalmente, as mudanças do mercado de tecnologia, e passeiam livremente por territórios que só não são ilegais porque as pessoas encarregadas de os tornarem ilegais sequer entendem que aquele território existe para começo de conversa.
E isso é uma grande pena. Fico a pensar numa entrevista em que Steve Jobs disse que (estou apenas parafraseando aqui) o tempo se encarregaria de tornar o mercado mais favorável a alguma decisão específica que a Apple havia tomado, o que foi um enorme eufemismo para dizer que era uma questão de tempo até os críticos da Apple morrerem, dando lugar à nova geração que entendia melhor a empresa. Penso muito nessa frase quando penso sobre o mercado de tecnologia, e confesso que sinto uma certa exasperação ao ver que a capacidade dos legisladores e dos políticos americanos de entenderem o mundo da tecnologia é basicamente a mesma apresentada por um pombo. E, nesses momentos, apesar de existirem obviamente problemas, vejo justamente na Europa um raio de esperança. A forma consistentemente bem-informada e firme com a qual a União Europeia tem lidado com isso, especialmente quando o assunto é privacidade, faz com que pareça possível ainda na nossa geração vermos decisões que consigam impedir empresas como o Facebook de se esquivarem de qualquer responsabilidade sobre o que fazem.
Até lá, confesso que dói um pouquinho pensar no quanto todos teremos que esperar até que esse futuro seja imposto no único país onde isso realmente poderia fazer a diferença, mas que parece ser o mais distante de onde algo assim possa acontecer.