Esta semana, a premiação de CODA como melhor filme nos Óscares serviu como uma mensagem alta e clara de Hollywood para a Netflix: “sabemos o que vocês estão a fazer”.
Quem acompanha as movimentações de Hollywood tem dito que, há tempos, a Academia tem demonstrado uma certa antipatia quanto à Netflix. E não é para menos. Há tempos, as decisões da Netflix sobre o financiamento e cancelamento de conteúdos (com base na análise de dados de quantos novos assinantes cada minuto de programação da plataforma consegue conquistar) tem irritado até mesmo os produtores mais pacientes deste mercado.
É bem verdade que assim como o Spotify inaugurou uma nova era para a indústria fonográfica, o mesmo pode ser dito sobre a Netflix e a indústria de entretenimento televisivo. Há muitos anos, quando o investimento em House of Cards deu certo, a Netflix foi clara com a sua mensagem para o mercado: vamos investir um valor inédito em criação de conteúdo próprio. Venham com seus roteiros, e nós produziremos o seu filme ou a sua série. E por muitos anos foi assim. A Netflix prometeu (e entregou) estreias mensais, semanais e, por muitas vezes, diárias de conteúdos. Isto deu voz a roteiristas, diretores e produtores marginalizados pelo mainstream de Hollywood, e mostrou que existia, sim, uma forma de reinventar o cinema e a TV via internet.
Conforme o tempo foi passando, a Netflix precisou de começar a reduzir um pouco o ritmo desses investimentos. Mais do que isso, ela passou a apoiar-se em dados e métricas que relacionavam diretamente quanto dinheiro ela havia investido num conteúdo, e quantos novos assinantes esse conteúdo havia trazido. Isso levou, por exemplo, à primeira grande polémica com o cancelamento de uma série de sucesso: Sense 8. Enquanto parte dos assinantes amavam a série, ela parou de trazer novos assinantes. E foi aí que a Netflix resolveu cancelar um dos seus conteúdos mais comentados nos últimos anos.
Anos mais tarde, para sorte de Hollywood, a Netflix não é a única empresa a investir fortunas em conteúdos originais. Muitos que cobrem o mercado de entretenimento referem-se ao nosso momento atual como “a nova era de ouro da TV”. E, novamente, não é para menos: é impossível passarmos um dia sem ver uma notícia sobre um filme ou série nova, uma plataforma de streaming nova, um trailer novo, um conteúdo novo, por vezes em um serviço cujo nome não conhecíamos até ao dia anterior.
Ao mesmo tempo, a Netflix foi perdendo o medo de mostrar que a única coisa que importa para ela não é a criação de conteúdos originais, mas 100% o retorno que isso trará para ela e para os investidores. Na mesma medida, Hollywood parou de fingir que não sabia o que a Netflix estava a fazer, por medo de perder a chance de ser financiada por ela. No meio disto tudo, os conteúdos originais da Netflix parecem cada vez mais artificiais, já que eles são produzidos com base em tabelas de Excel, e não pelo amor à produção audiovisual.
O que nos traz ao Oscar deste ano. CODA foi uma espécie de representante anti-Netflix na premiação. E não é porque ele era um filme da Apple. Aliás, CODA não é um filme da Apple. É uma produção independente, sobre a qual a Apple comprou os direitos (parciais) de distribuição durante a premiação Sundance.
Em outros anos, CODA dificilmente teria sido um candidato ao Óscar de melhor filme. É uma refilmagem de um filme francês de pouca expressividade, e ainda por cima tem uma história que já foi contada centenas de vezes no cinema. Por outro lado, bastam poucos minutos para perceber que é uma obra de paixão, e não apenas mais uma tentativa de rentabilizar uma história construída em cima de análise de gostos, perfis e retorno sobre investimento. Com a premiação de CODA como o melhor filme do ano, a academia mostrou à Netflix que não importa o quanto a Netflix brade aos quatro ventos que tem dinheiro de sobra para produzir conteúdo. A academia mostrou, na verdade, que a verdadeira arte pode ser feita inclusive por quem sequer tem a habilidade de escutar esses brados.