Não sou um grande conhecedor da cultura oriental e começo o meu primeiro texto no Updated a pedir desculpas por uma generalização talvez injusta e ingénua. Mas acho que, se existe um adjetivo que pode ser atribuído à cultura oriental ela, de forma bem geral, é disciplina. Outro, talvez, é perenidade.
Por favor, corrijam-me se estiver errado, mas tenho a impressão de que especialmente em situações extremas, mais do que em qualquer outro povo, a cultura oriental determina que o compromisso inabalável com o objetivo final (seja ele qual for) está acima de tudo, e não há justificação ou sequer espaço para desviar do curso proposto até que este objetivo seja atingido com vigor e de forma inquestionável.
Quando observo as notícias recentes vindas da China, quando o assunto são as empresas nacionais de tecnologia, é justamente com este olhar que eu reflito sobre a situação. Para quem não sabe o que está a acontecer, é o seguinte: no dia 30 de junho, a empresa Didi Chuxing (que mal-comparando, é a Uber da China) fez a oferta inicial de ações na bolsa de Nova Iorque.
Ela levantou US$ 4,4 milhões, ficou avaliada em US$ 70 milhões e, dois dias depois, o governo chinês proibiu a empresa de aceitar perfis de novos utilizadores. Mais do que isso, ele também determinou a remoção da aplicação da Didi das lojas de aplicações menos de uma semana após a estreia na bolsa de valores (que foi a maior estreia do ano até agora, diga-se de passagem), ela viu o seu valor de mercado despencar em mais de 20%. Este movimento segue até hoje. Enquanto escrevo este texto, ela já perdeu 36% do valor de mercado original. Ops, 37% agora.
Conforme os dias foram passando, alguns detalhes de bastidores foram surgindo sobre esta situação. O governo chinês havia alertado a Didi que ela seria alvo de novas medidas regulatórias e, por isso, seria melhor adiar a oferta inicial, mas a Didi seguiu em frente com plano. Deu no que deu.
Mas qual foi o problema que o governo chinês teve com a Didi. Bem, esta parte ainda é parcialmente desconhecida, mas o que já foi informado ao mercado é que o governo entendeu que a Didi estava a recolher dados pessoais de forma ilegal. O governo determinou uma série de mudanças (que ainda não foram detalhadas), e a Didi vem a trabalhar para implementá-las.
Pois bem. Alguns dias depois de todo este imbróglio com a Didi, surgiram mais situações parecidas. A Tencent suspendeu o registo de novos utilizadores do WeChat (que, para quem não conhece, é a app mais usado do país), a ByteDance revelou que havia adiado o seu IPO a pedido do governo chinês, e o valor de mercado de todas essas empresas, incluindo as gigantes Alibaba e Baidu passaram a despencar num grau um pouco menor comprado com o da Didi.
Mas, para que tudo isso? Pois bem, esta semana o governo chinês pronunciou-se no que imagino que será o mais próximo de uma explicação que teremos de Beijing. A intenção destas novas regulamentações é preservar um ambiente de concorrência saudável e, claro, de controlo sobre o segmento de tecnologia. Por isso, inclusive, estas novas regulamentações serão anunciadas, mantidas e promovidas até pelo menos 2025, custe o que custar.
E já está a custar bastante. Apenas em julho, a desvalorização conjunta das empresas chinesas somou US$ 150 milhões, e este déficit só aumentou nas últimas semanas.
Analisando a (aparente, vai saber) intenção do governo chinês, parece-me ser o caso que a explicação mais simples é: ele não que aconteça por lá o que aconteceu nos Estados Unidos, onde empresas como o Facebook, a Amazon, o Google e a Apple se tornaram mais poderosas do que o próprio governo, e controlarão por muito tempo o mercado de tecnologia.
Curiosamente, o mais próximo de uma medida assim vinda dos Estados Unidos recentemente foi toda a confusão com o TikTok que, como eu previ desde o começo, não deu em absolutamente nada. Comparando esta situação com as medidas (e com as consequências) imediatas que já aconteceram na China, fica bem claro o motivo pelo qual as grandes empresas de tecnologia já estão completamente além de uma possível regulamentação e volta a um ambiente saudável de concorrência, e como a China não permitirá que aconteça o mesmo por lá.
Por fim, um último pensamento: é claro que interferências do governo anulam completamente a proposta de livre mercado, e a China nunca foi exatamente um exemplo unânime de justiça ou social. Não estou a defender aqui que a atitude da China esteja correta, ou seja, mais correta do que a dos Estados Unidos.
Dito isso, o fato da China ter observado o que aconteceu nos Estados Unidos e ter decidido que não permitirá que o mesmo aconteça por lá, a respeito de uma previsível redução dramática no valor de mercado de todas essas empresas (e, por extensão, do próprio país), será um curioso estudo de caso para ser observado.
É claro que a China não poderá manter esta atitude para sempre, afinal, também é interessante para ela que as empresas domésticas fiquem cada vez mais valorizadas. Mas se, em 2025, de fato existir um mercado mais competitivo, mais aberto e mais inovador do que em 2021, mais uma vez a disciplina e a perenidade ter-se-ão provado eficazes, ainda que bastante maquiavélicos.